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reflexões sobre o deficit

1. O facto de quase todos os partidos no Parlamento terem concordado com algumas das medidas propostas pelo Governo (não todos com as mesmas, evidentemente) leva a uma triste conclusão: a necessidade da decisão de Sócrates já era conhecida de todos, e todos podiam ter decidido isto mais cedo. Não tiveram foi tomates - e não ter maioria no Parlamento não é desculpa para a falta destes.

2. O fim do sigilo fiscal parece, à partida, um bom contrapeso para evitar a evasão fiscal dos rendimentos taxados pela nova taxa de 42%. Um empresário pensará duas vezes antes de entregar uma declaração fraudulenta se souber que essa mesma declaração estará disponível aos trabalhadores da sua empresa, à imprensa, à concorrência. O perigo óbvio: entrarmos numa realidade de diz-que-não-pagou, de desconfianças, de falsas denúncias ao Fisco motivadas só por desentendimentos pessoais. Não vejo possibilidade para um meio termo, mas espero que tudo se resolva como quando o euro foi introduzido: esperava-se o pior, mas tudo se resolveu pelo melhor logo nos primeiros tempos.

3. Portugal sofre de um problema estrutural que vai para além do deficit e da evasão. Em Portugal, o sentido cívico, a noção do que é o Público e o exercício da cidadania não estão desenvolvidos. Não se pode ignorar o deficit, considerando-o um problema do Governo, um problema "deles", dos políticos; não o é, é um problema do país, que afecta a competividade da economia nos mercados internacionais e, por acréscimo, o seu crescimento interno. É um problema público e, sendo-o, é de todos nós. Se eu pago impostos, se dou dinheiro para um fundo comum que deve servir a comunidade, quero que esse dinheiro seja bem usado e quero expressar, nem que seja pelo mero voto, a minha noção do que é usá-lo bem. As nossas pontes, as nossas estradas, os funcionários públicos que devem ajudar à gestão do que é de todos nós e não dificultar a vida aos demais com a sua incompetência, tudo isso é uma estrutura criada ao longo do tempo por nós e para nós. Aumentar os impostos e salientar a gravidade da situação das nossas contas é um modo de todos pararmos e pensarmos "se pago mais, quero que o que pago seja bem gasto". É, desde logo, uma alavanca para a participação pública e para o incremento da consciência política da população. Não é uma justificação, mas pode ser uma consequência positiva.

4. A minha mãe é professora e compreendo bem o descontentamento dos funcionários públicos perante a perspectiva de um aumento do número de anos necessários para se reformarem e uma diminuição do montante dessa mesma reforma. Mas não podemos ignorar: ainda há quem julgue que ser funcionário público se limita a alcançar um estatuto que permita uma vivência despreocupada, sem a mínima consciência do serviço ao Público e à comunidade, que é, afinal, o motivo essencial para a existência da função pública. É uma compreensão nociva e com grande propensão a espalhar-se. A manutenção de certos privilégios, como a progressão automática na carreira, favorece a continuação deste estado de coisas e torna-se particularmente gravosa numa situação de descalabro tão grande das contas públicas.

5. Há uma diferença saudável entre o discurso do actual governo e o do anterior. Barroso e Ferreira Leite davam a entender que a descida do deficit servia apenas para contentar Bruxelas. Sócrates, por seu lado, evidencia a possibilidade de um agravamento da crise social, que é real e que leva o Pcp a cair em contradição quando insiste em separar a protecção dos trabalhadores da preocupação com as finanças estatais: estas são do domínio do Público, logo, os trabalhadores (principalmente os mais favorecidos), enquanto cidadãos, não devem manter-se alheados do problema; os trabalhadores trabalham no âmbito de uma economia, à qual o problema do deficit não é indiferente.

6. A má situação do país não poderá servir de desculpa sempiterna para a tomada de decisóes impopulares. O governo Sócrates fala pouco e parece ser ponderado nas decisões. Que não estrague tudo no futuro.

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