Este blog está encerrado.

O autor continua a publicar em http://jvnande.com.

Se quiser ler uma selecção de textos, clique aqui.

a micronarrativa (e o natal)

Há tempos, fui de propósito à loja grande comprar o livro de Daniil Harms. Há dias, fui à loja ainda maior buscar os contos do Mário Henrique-Leiria. Nos meus aniversário no domingo, deram-me o Russel Edson. Edson, na edição da Assírio de 2000, ainda é puxado para o lado de poeta, talvez porque o próprio Edson não podia saber o que é a micronarrativa. O mesmo já não se passa com Harms, editado numa época em que tudo se sabe. Henrique-Leiria, por seu lado, diz que é fundador. Por mim, a primeira vez que ouvi falar desta coisa foi ainda pelo nome de microconto, num concurso de Natal do Público em 2001. Os vencedores foram publicados na revista de Domingo (lembro-me particularmente de um que era algo como - Que dia é hoje? - 25. - Não, não, da semana. - Terça-feira. - Ah.). O meu foi este aqui em baixo e é curioso ver hoje como na Minguante já não entrava por ter palavras a mais.
A casa era de pedra. Naquela noite, chegavam-lhe ecos longínquos pelo ar pesado, que deixava nas coisas um rasto húmido de geada. Via-se o tic-tac de grandes luzes para lá do monte, mas o monte continuava negro. Naquela noite, tudo estava longe.
Lá dentro, sentada a um canto, ela olhava para um televisor pequeno, gasto, a preto e branco, como o luto, volume baixo para não tentar males. O lume crepitava no fogão que, durante uma vida, havia enegrecido aquelas quatro paredes de granito e que, agora, lhe aconchegava a camisola de lã ao corpo pequeno e anafado.
Fazia anos naquela noite, mas ninguém sabia. Imóvel no banco de madeira, os olhos envelhecidos muito abertos para os movimentos silenciosos dos actores, ia-se lembrando de coisas que, por não ter mais ninguém, recontava a si própria. E, no entanto, parecia que tudo tinha começado no momento em que, brincando sozinha afastada da mãe, susteve a respiração e tentou não fazer ruído. A mãe daria com ela pouco depois desmaiada no chão e, desde o momento em que se deixara sufocar, nunca mais encontrara o silêncio.
Mas algo haveria de ser diferente naquela noite, a mesma e outra daquela em que um homem a conheceu pela primeira vez, a mesma e outra daquela em que os seus filhos haviam nascido, a mesma e outra daquela em que tinha reparado como tudo o que chega tem de partir. Ela, que sempre ali estivera, não tinha realmente chegado a sítio algum. E foi então que alguma luz brilhou mais intensamente e iluminou o enorme monte por um segundo. A televisão desligou-se sozinha e, como um galho solto na dobra do tempo, a lenha moveu-se dentro do fogão.
Ela sorriu e fechou os olhos. Maria havia encontrado o silêncio.

1 Comentários:

Anonymous Helena disse...

Ao ler este pequeno texto vislumbro talvez uma avó que vivia em reiriz... pode ser impressão minha...

12:51:00 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home

« Home | Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »
| Próximo »


jorge vaz nande | homepage | del.icio.us | bloglines | facebook | e-mail | ligações |

novembro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009