um conto para os leitores da peste
Andei a correr os arquivos e encontrei este conto que escrevi aqui há uns tempos já não me lembro com que fim. Aqui o deixo para vosso deleite - ou não!
O PARÊNTESES
Havia uma ou outra cara de universitário que se virava para ver as feições de Joaquim Nando enquanto ele não fazia mais do que aproximar-se do balcão e pedir uma cerveja. No palco, noite fraca. Só um cantautor local que, anos antes, em tendo vinte e seis, criara sensação, mas que agora, dentista e pai de dois filhos, limitava-se a tocar ao regabofe canções sem critério. Não espantava assim que Joaquim Nando, o crítico musical que escrevera o famoso artigo “Só um Homem” aquando do concerto único que Serge Gainsbourg dera na cidade, preferisse a cerveja à atenção. Também não espantava que os universitários preferissem Joaquim Nando à guitarra do cantautor, que, na verdade, parecia mais bêbedo do que eles próprios.
Depois do concerto, sentado no sofá da sua sala, Joaquim Nando estava descalço e bebia um copo de leite morno. Detesto cerveja, pensava, enquanto levava a mão à barriga e esfregava a azia. Sentia-se velho, tinha pêlos a crescerem em sítios novos e via pior. No ouvido, a fatalidade que esperava: cada vez mais preferia Bach a Bacharach. Já o percebera nos artigos que escrevia ainda para o jornal, crescentemente densos e inseguros, e pouco demoraria até que os leitores percebessem também. Naquele sofá, Joaquim Nando tinha a certeza de ser um homem condenado.
Olhou para a estante. Os livros estavam desarrumados, caídos uns sobre os outros como uma tempestade no mar. Joaquim Nando não o via, mas sabia que, por baixo de todos os demais, escondido de propósito para não ter que olhar para ele quando tivesse de ir consultar a enciclopédia, estava o calhamaço de Greil Marcus que Cláudia deixara a meio sobre a televisão no dia em que se fora embora. Cláudia, pensou, e esfregou um pouco mais a azia. Deixou o copo de leite a meio e foi-se deitar.
Horas mais tarde, uma cantora pop dos anos 80 olhava para as luzes das fábricas no outro lado da ria enquanto tentava caminhar pelo breu das pedras do quebra-mar. Havia pescadores com canas empinadas, que discutiam em voz baixa se ela era mesmo ela. No entanto, Cláudia não os ouvia. Os pés falhavam-lhe de vez em quando, ela tropeçava. Lembrou-se do concerto em que se tinha despido para Serge Gainsbourg enquanto dançava e lembrou-se de, no fim, ter preferido Joaquim Nando ao cantor cabeça-de-couve. Dançar e despir-se e ninguém que a censurasse: bem melhor do que aqueles pescadores estúpidos com as línguas penduradas e as mulheres à espera em casa. Mas a fama acabara-lhe cedo demais.
Cláudia parou e olhou a água. Pensou no que fazer e, como todas as noites, lembrou-se: há livros ainda que não li. Levantou a cabeça: o céu clareava. Há livros que ainda não li, outra vez, um eco dentro dela. Suspirou. Caminhou de volta para o carro e entrou nele. Estava frio. Esfregou os braços com as mãos, acendeu um cigarro e arrancou, passando pelos pescadores como se, afinal, eles não existissem.
O PARÊNTESES
Havia uma ou outra cara de universitário que se virava para ver as feições de Joaquim Nando enquanto ele não fazia mais do que aproximar-se do balcão e pedir uma cerveja. No palco, noite fraca. Só um cantautor local que, anos antes, em tendo vinte e seis, criara sensação, mas que agora, dentista e pai de dois filhos, limitava-se a tocar ao regabofe canções sem critério. Não espantava assim que Joaquim Nando, o crítico musical que escrevera o famoso artigo “Só um Homem” aquando do concerto único que Serge Gainsbourg dera na cidade, preferisse a cerveja à atenção. Também não espantava que os universitários preferissem Joaquim Nando à guitarra do cantautor, que, na verdade, parecia mais bêbedo do que eles próprios.
Depois do concerto, sentado no sofá da sua sala, Joaquim Nando estava descalço e bebia um copo de leite morno. Detesto cerveja, pensava, enquanto levava a mão à barriga e esfregava a azia. Sentia-se velho, tinha pêlos a crescerem em sítios novos e via pior. No ouvido, a fatalidade que esperava: cada vez mais preferia Bach a Bacharach. Já o percebera nos artigos que escrevia ainda para o jornal, crescentemente densos e inseguros, e pouco demoraria até que os leitores percebessem também. Naquele sofá, Joaquim Nando tinha a certeza de ser um homem condenado.
Olhou para a estante. Os livros estavam desarrumados, caídos uns sobre os outros como uma tempestade no mar. Joaquim Nando não o via, mas sabia que, por baixo de todos os demais, escondido de propósito para não ter que olhar para ele quando tivesse de ir consultar a enciclopédia, estava o calhamaço de Greil Marcus que Cláudia deixara a meio sobre a televisão no dia em que se fora embora. Cláudia, pensou, e esfregou um pouco mais a azia. Deixou o copo de leite a meio e foi-se deitar.
Horas mais tarde, uma cantora pop dos anos 80 olhava para as luzes das fábricas no outro lado da ria enquanto tentava caminhar pelo breu das pedras do quebra-mar. Havia pescadores com canas empinadas, que discutiam em voz baixa se ela era mesmo ela. No entanto, Cláudia não os ouvia. Os pés falhavam-lhe de vez em quando, ela tropeçava. Lembrou-se do concerto em que se tinha despido para Serge Gainsbourg enquanto dançava e lembrou-se de, no fim, ter preferido Joaquim Nando ao cantor cabeça-de-couve. Dançar e despir-se e ninguém que a censurasse: bem melhor do que aqueles pescadores estúpidos com as línguas penduradas e as mulheres à espera em casa. Mas a fama acabara-lhe cedo demais.
Cláudia parou e olhou a água. Pensou no que fazer e, como todas as noites, lembrou-se: há livros ainda que não li. Levantou a cabeça: o céu clareava. Há livros que ainda não li, outra vez, um eco dentro dela. Suspirou. Caminhou de volta para o carro e entrou nele. Estava frio. Esfregou os braços com as mãos, acendeu um cigarro e arrancou, passando pelos pescadores como se, afinal, eles não existissem.
2 Comentários:
Perdoa-me o atrevimento, mas queria fazer-te uma pergunta... Até que ponto é este um conto autobiográfico? Qual é a distância que separa o Jorge Nande do Joaquim Nando? Se não quiseres estar a responder aqui, podes sempre responder-me para o mail.
Um abraço!
Nenhum atrevimento teu na pergunta, nenhum embaraço meu na resposta. Efectivamente, é difícil responder à tua pergunta, e explico porquê: é claro que Joaquim Nando é uma brincadeira com o meu nome. Porém, é claro para quem me conhece - e tu conheces - que eu nunca fui crítico musical nem tive qualquer tipo de relação com uma has ben musical dos anos 80. Por outro lado, é verdade que o concerto vem de impressões de concertos vistas por mim, que a ria por onde Cláudia anda é um lugar específico por onde passei uma vez e que me surgiu como natural para pôr a acção, que na altura em que escrevi isto andava muito marcado pelo "Marcas de Baton" do Griel Marcus. O que me levou a juntar a personagem a mim através do nome, não sei. Se calhar, achei só que soava bem.
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