Do aborto
Antes de mais, eu não sou um fazedor de opinião profissional. As minhas reflexões neste blog não resultam do compromisso com qualquer meio de comunicação. Desconsidero a opinião pela opinião, a notícia para o enchimento de espaço livre. Por isso, só falo disto agora, depois de toda a discussão e só depois de ter tido o tempo suficiente para arrumar as ideias. A discussão voltará um dia. Este texto já fica, que é para não ser apanhado desprevenido quando ela chegar.
Há dias, vinha eu no autocarro em direcção a casa. Estava a tentar dormir sono de autocarro, ou seja, abrindo frequentemente os olhos sem que alguma vez acordasse (ou dormisse) verdadeiramente. A rádio estava ligada e eu ouvi uma mulher exaltada num fórum da Antena 1. “Eu já tenho 64 anos e nunca abortei. Mas, se neste momento tivesse de o fazer, eu fazia-o, porque no meu corpo só mando eu e porque não traria um filho ao mundo de propósito para o dar para adopção. Já viu o que era eu dá-lo e ele ser adoptado pelo Paulo Portas ou por alguém como ele?”.
Isto fez-me pensar. Uma mulher de idade já mais avançada diz isto e, ainda por cima, põe-se logo a seguir a soltar umas verdades bastante brutas sobre a igreja e respectivas frequentadoras. Ao longo do programa, mais pessoas do mesmo grupo etário declararam o seu consentimento à interrupção voluntária da gravidez. Eu, jovem do pós-referendo e de consciência política saudavelmente (julgo) construída: o que pensar, qual deve ser a minha posição em relação ao assunto?
A frase que proferirei em seguida poderá parecer à primeira leitura, reconheço-o, horrível e merecedora de grande destaque na secção de prémios da Grande Reportagem. Mas eu não consigo deixar de pensar que a reflexão sobre o aborto é demasiadamente centrada na questão da vida, da determinação do seu início e, por arrastamento, da noção do que é (ou onde começa a ser) o Homem.
Considero que a centralização do debate em tal questão implica, pelo menos, duas consequências negativas. Primeiro, sendo sem dúvida inultrapassável, ela revela –sempre revelou – uma forte aptidão para fazer pender o discurso para a demagogia. Segundo, monopolizar a atenção pública para essa dimensão do fenómeno social complexo que é o aborto, como aconteceu na discussão pré-referendo de aqui há uns anos, simplifica os termos, os lados do jogo, se é que se pode dizer assim, em bons pró-vida e maus pró-morte, nos que querem deixar viver a criança e os pérfidos assassinos. Porque a simplificação do debate pode sem dúvida ter, em eleitores com menor instrução, mais influenciáveis por dados poderes instituídos ou que simplesmente não possam, por quaisquer razões, ponderar a fundo aquilo que lhes é pedido ou perguntado, esse incrível efeito de fazer sentir a possível solução como, daqui para a frente, ou deixar viver todos os bebés concebidos ou fazer matar todos os bebés concebidos. Não ajuda nada que certos clérigos se achem no direito de direccionar o voto dos seus paroquianos para um sentido, preferindo agitar-lhes na cara as chamas do inferno a explicar-lhes – e falamos de pessoas muitas vezes isoladas em meios onde questões como estas são invariavelmente resolvidas através de uma surda condenação preconceituosa, meios onde a igreja deveria actuar como guia de lucidez e de compreensão do mundo exterior – exactamente o que está em jogo, confrontá-los com as diversas opiniões e fundamentando a razão de ser da posição que a igreja toma, permitindo assim que elas tomem a sua própria opinião e favorecendo a reflexão e o esclarecimento.
A verdade é que o aborto é uma certeza histórica. Ele vai continuar a acontecer e, o que é pior, vai continuar a mandar mulheres para o hospital por complicações devidas a um procedimento incompetente ou, simplesmente, de quem não possuía os meios médicos necessários para torná-lo competente. O que, em todo o caso, não o costuma impedir de cobrar quantias consideráveis àquelas que o procuram.
Uma nota de atenção deve ser introduzida aqui, já que este é um aspecto que a discussão pública também nem sempre foca como devia. As mulheres que abortam, as que acabam por ir parar ao hospital por isso e as que não, tomam uma decisão dura, que contraria o seu instinto natural básico de maternidade. Sabem que vão sofrer dores horríveis, desequilíbrios hormonais, corrimentos. Sabem que abdicam do dom de serem mães e arriscam perderem-no para sempre. Nenhuma mulher, nem que seja simplesmente por esse incómodo físico, começará a encetar uma vida sexual descuidada pelo mero facto de saber que poderá vir a abortar do filho que poderá conceber. Isso é uma ilusão causada por mentes assustadas que sentem segurança a respirar o ar condicionado de megacentros comerciais.
Já se falou da certeza da perenidade do aborto. Já se ilibou a mulher da sua culpa primordial. Mas poder-se-á sempre contra-argumentar que não é por saber que vai sempre haver homicídios que estes se vão legalizar. Concordo plenamente, não há mais nada a dizer e isto encerra a reflexão. Ou talvez não. É que não é exactamente essa a razão que me leva a achar justificável a interrupção voluntária da gravidez. Vejamos. Para haver essa interrupção, existe
a) a mulher que aborta
b) a pessoa que, através de conhecimentos e técnicas adequadas, deve provocar o aborto.
A mulher que aborta sofre o aborto no seu próprio corpo. O acto é efectuado sobre ela própria, ao contrário do do homicida. Não quer isto dizer que o sistema de saúde público (pois eu só concebo uma correcta despenalização da interrupção voluntária da gravidez com uma consequente responsabilização do sistema de saúde pública – de nada adiantará que se deixe simplesmente que as mulheres possam visitar o carniceiro, que, atente-se, nem sempre o é por simples vontade exploratória) deva também ser responsável por uma auto-amputação que um ser desequilibrado queira levar a cabo. A actuação desse serviço deve-se julgar segundo um critério de necessidade aferida a partir da gravidade de um determinado problema no âmbito daquilo que se convenciona chamar “saúde pública”. O aborto é ou não um problema crucial de saúde pública quando, em 2002 – e isto é um exemplo (não quero que me acusem de ir buscar justificações de princípio a efemérides temporárias sem repercussão) - oito mil mulheres deram entrada nos hospitais portugueses por complicações derivadas do aborto? Quantas mais não terão corrido esse risco ou sofreram o que tinham a sofrer em casa, por vergonha ou medo? Elas têm ou não o direito a evitarem tudo isso sendo tratadas por quem sabe o que faz?
Pergunta: o aborto permitido é um fim em si mesmo? Não, é óbvio. Deve ser acompanhado por assistência ao planeamento familiar, aconselhamento a adolescentes, divulgação e distribuição de meios contraceptivos. Segunda pergunta: ele deve esperar pela concretização de tudo isto, ou será isto suficiente ao ponto de permitir abdicar dele? Não parece: apesar de tudo, o sexo já não é o tabu que já foi. Os adolescentes, os jovens, todos estão já a par dos métodos contraceptivos existentes (pelo menos, do preservativo) e, no entanto, não deixam de aparecer mães adolescentes. Serviu para alguma coisa o “Não” (não vinculativo) do referendo?
Ainda quanto à questão da vida humana. Eu considero que (nas semanas iniciais, como é óbvio, e os partidos têm tido consciência disso) o embrião ou o feto pertence mais à mulher do que a si mesmo. Não concordo com o argumento do direito a fazer o que se quiser com o seu próprio corpo, soa-me um pouco a feminismo mal mastigado. Acho, sim, que a mulher tem o direito a fazer o necessário ao seu corpo, ou melhor, que a última palavra acerca de uma intervenção com repercussões sobre o corpo deve ser invariavelmente da pessoa a quem esse corpo pertence. Se a mulher considera que o que está dentro dela e virá a tornar-se num ser autónomo dela não deve continuar a percorrer o processo que o levará a essa autonomia, ela deve ter o direito de interromper o seu crescimento recorrendo a uma equipa médica competente e que a acompanhe, evitando as armadilhas do submundo. É imoral que uma pessoa que tenha de tomar essa decisão difícil e sofra por o ter feito seja tratada como uma criminosa aos olhos da lei e do Estado.
E se o Sr. Dr. Durão Barroso não se acha na posição de julgar uma mulher que tenha abortado mas não se digna a levar o assunto a referendo, eu digo isto. Já ouvi muitas vezes dizer “em princípio, condeno o aborto, mas não que digo que não mudaria de opinião se passasse por uma situação semelhante”. Custa-me a compreender. Acho hipócrita. Se a minha namorada engravidasse acidentalmente, eu seria o primeiro a encorajá-la a termos o filho. Mas não condeno quem não se sentiu na posição de o fazer. Em princípio, tolero o aborto, mas quereria ter o filho se passasse por uma situação semelhante. Assim, parece-me, é mais correcto. Mas talvez não politicamente.
Há dias, vinha eu no autocarro em direcção a casa. Estava a tentar dormir sono de autocarro, ou seja, abrindo frequentemente os olhos sem que alguma vez acordasse (ou dormisse) verdadeiramente. A rádio estava ligada e eu ouvi uma mulher exaltada num fórum da Antena 1. “Eu já tenho 64 anos e nunca abortei. Mas, se neste momento tivesse de o fazer, eu fazia-o, porque no meu corpo só mando eu e porque não traria um filho ao mundo de propósito para o dar para adopção. Já viu o que era eu dá-lo e ele ser adoptado pelo Paulo Portas ou por alguém como ele?”.
Isto fez-me pensar. Uma mulher de idade já mais avançada diz isto e, ainda por cima, põe-se logo a seguir a soltar umas verdades bastante brutas sobre a igreja e respectivas frequentadoras. Ao longo do programa, mais pessoas do mesmo grupo etário declararam o seu consentimento à interrupção voluntária da gravidez. Eu, jovem do pós-referendo e de consciência política saudavelmente (julgo) construída: o que pensar, qual deve ser a minha posição em relação ao assunto?
A frase que proferirei em seguida poderá parecer à primeira leitura, reconheço-o, horrível e merecedora de grande destaque na secção de prémios da Grande Reportagem. Mas eu não consigo deixar de pensar que a reflexão sobre o aborto é demasiadamente centrada na questão da vida, da determinação do seu início e, por arrastamento, da noção do que é (ou onde começa a ser) o Homem.
Considero que a centralização do debate em tal questão implica, pelo menos, duas consequências negativas. Primeiro, sendo sem dúvida inultrapassável, ela revela –sempre revelou – uma forte aptidão para fazer pender o discurso para a demagogia. Segundo, monopolizar a atenção pública para essa dimensão do fenómeno social complexo que é o aborto, como aconteceu na discussão pré-referendo de aqui há uns anos, simplifica os termos, os lados do jogo, se é que se pode dizer assim, em bons pró-vida e maus pró-morte, nos que querem deixar viver a criança e os pérfidos assassinos. Porque a simplificação do debate pode sem dúvida ter, em eleitores com menor instrução, mais influenciáveis por dados poderes instituídos ou que simplesmente não possam, por quaisquer razões, ponderar a fundo aquilo que lhes é pedido ou perguntado, esse incrível efeito de fazer sentir a possível solução como, daqui para a frente, ou deixar viver todos os bebés concebidos ou fazer matar todos os bebés concebidos. Não ajuda nada que certos clérigos se achem no direito de direccionar o voto dos seus paroquianos para um sentido, preferindo agitar-lhes na cara as chamas do inferno a explicar-lhes – e falamos de pessoas muitas vezes isoladas em meios onde questões como estas são invariavelmente resolvidas através de uma surda condenação preconceituosa, meios onde a igreja deveria actuar como guia de lucidez e de compreensão do mundo exterior – exactamente o que está em jogo, confrontá-los com as diversas opiniões e fundamentando a razão de ser da posição que a igreja toma, permitindo assim que elas tomem a sua própria opinião e favorecendo a reflexão e o esclarecimento.
A verdade é que o aborto é uma certeza histórica. Ele vai continuar a acontecer e, o que é pior, vai continuar a mandar mulheres para o hospital por complicações devidas a um procedimento incompetente ou, simplesmente, de quem não possuía os meios médicos necessários para torná-lo competente. O que, em todo o caso, não o costuma impedir de cobrar quantias consideráveis àquelas que o procuram.
Uma nota de atenção deve ser introduzida aqui, já que este é um aspecto que a discussão pública também nem sempre foca como devia. As mulheres que abortam, as que acabam por ir parar ao hospital por isso e as que não, tomam uma decisão dura, que contraria o seu instinto natural básico de maternidade. Sabem que vão sofrer dores horríveis, desequilíbrios hormonais, corrimentos. Sabem que abdicam do dom de serem mães e arriscam perderem-no para sempre. Nenhuma mulher, nem que seja simplesmente por esse incómodo físico, começará a encetar uma vida sexual descuidada pelo mero facto de saber que poderá vir a abortar do filho que poderá conceber. Isso é uma ilusão causada por mentes assustadas que sentem segurança a respirar o ar condicionado de megacentros comerciais.
Já se falou da certeza da perenidade do aborto. Já se ilibou a mulher da sua culpa primordial. Mas poder-se-á sempre contra-argumentar que não é por saber que vai sempre haver homicídios que estes se vão legalizar. Concordo plenamente, não há mais nada a dizer e isto encerra a reflexão. Ou talvez não. É que não é exactamente essa a razão que me leva a achar justificável a interrupção voluntária da gravidez. Vejamos. Para haver essa interrupção, existe
a) a mulher que aborta
b) a pessoa que, através de conhecimentos e técnicas adequadas, deve provocar o aborto.
A mulher que aborta sofre o aborto no seu próprio corpo. O acto é efectuado sobre ela própria, ao contrário do do homicida. Não quer isto dizer que o sistema de saúde público (pois eu só concebo uma correcta despenalização da interrupção voluntária da gravidez com uma consequente responsabilização do sistema de saúde pública – de nada adiantará que se deixe simplesmente que as mulheres possam visitar o carniceiro, que, atente-se, nem sempre o é por simples vontade exploratória) deva também ser responsável por uma auto-amputação que um ser desequilibrado queira levar a cabo. A actuação desse serviço deve-se julgar segundo um critério de necessidade aferida a partir da gravidade de um determinado problema no âmbito daquilo que se convenciona chamar “saúde pública”. O aborto é ou não um problema crucial de saúde pública quando, em 2002 – e isto é um exemplo (não quero que me acusem de ir buscar justificações de princípio a efemérides temporárias sem repercussão) - oito mil mulheres deram entrada nos hospitais portugueses por complicações derivadas do aborto? Quantas mais não terão corrido esse risco ou sofreram o que tinham a sofrer em casa, por vergonha ou medo? Elas têm ou não o direito a evitarem tudo isso sendo tratadas por quem sabe o que faz?
Pergunta: o aborto permitido é um fim em si mesmo? Não, é óbvio. Deve ser acompanhado por assistência ao planeamento familiar, aconselhamento a adolescentes, divulgação e distribuição de meios contraceptivos. Segunda pergunta: ele deve esperar pela concretização de tudo isto, ou será isto suficiente ao ponto de permitir abdicar dele? Não parece: apesar de tudo, o sexo já não é o tabu que já foi. Os adolescentes, os jovens, todos estão já a par dos métodos contraceptivos existentes (pelo menos, do preservativo) e, no entanto, não deixam de aparecer mães adolescentes. Serviu para alguma coisa o “Não” (não vinculativo) do referendo?
Ainda quanto à questão da vida humana. Eu considero que (nas semanas iniciais, como é óbvio, e os partidos têm tido consciência disso) o embrião ou o feto pertence mais à mulher do que a si mesmo. Não concordo com o argumento do direito a fazer o que se quiser com o seu próprio corpo, soa-me um pouco a feminismo mal mastigado. Acho, sim, que a mulher tem o direito a fazer o necessário ao seu corpo, ou melhor, que a última palavra acerca de uma intervenção com repercussões sobre o corpo deve ser invariavelmente da pessoa a quem esse corpo pertence. Se a mulher considera que o que está dentro dela e virá a tornar-se num ser autónomo dela não deve continuar a percorrer o processo que o levará a essa autonomia, ela deve ter o direito de interromper o seu crescimento recorrendo a uma equipa médica competente e que a acompanhe, evitando as armadilhas do submundo. É imoral que uma pessoa que tenha de tomar essa decisão difícil e sofra por o ter feito seja tratada como uma criminosa aos olhos da lei e do Estado.
E se o Sr. Dr. Durão Barroso não se acha na posição de julgar uma mulher que tenha abortado mas não se digna a levar o assunto a referendo, eu digo isto. Já ouvi muitas vezes dizer “em princípio, condeno o aborto, mas não que digo que não mudaria de opinião se passasse por uma situação semelhante”. Custa-me a compreender. Acho hipócrita. Se a minha namorada engravidasse acidentalmente, eu seria o primeiro a encorajá-la a termos o filho. Mas não condeno quem não se sentiu na posição de o fazer. Em princípio, tolero o aborto, mas quereria ter o filho se passasse por uma situação semelhante. Assim, parece-me, é mais correcto. Mas talvez não politicamente.
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