Há um espaço enorme com silêncio, ouço-o, pressinto-o na fronteira da pele como a vertigem ao pé da água. Estar prestes a cair, ligar as luzes como se se quisesse dizer alguma coisa a alguém, não saber o que marcar e perder-se nos pára-sóis da vertigem: não é opção. O gato gordo vai percorrer as vielas mais uma vez. Vai encontrar mais papéis em avião do que em branco, vai passar ao lado da comida dourada, vai pensar em encontrar-se no caminho: não é opção. O espelho reflecte o quê, pensa ele, e, ao pensar em espelho, pensa em contornar o absurdo de carro e no que o rapaz viu há pouco, um velho a falar de dinheiro, um velho a falar de palavras. A memória, "it's a bitch", pois é, mas ao menos eu sei como dar-lhe a volta - será que sei? Eu gostava de saber o que tu fazes e é admirável, disse a mulher, franjinha-à-beatriz, mas isso não vale um chavo, não faz mal, eu completo. O gato, sim, sempre na viela. Há um homem, costas nuas, ele vigia-o, certifica-se de que nada de desrespeitável acontece. Afinal, são as festas do mundo e é preciso ter cuidado, afinal, tudo está no Sul, não é, o grande sul das coisas todas. E o homem pensa que deve, talvez, punir o pai, sanar o pecado capital na raiz e limpar as crostas das feridas nocturnas. O gato gordo vai percorrer as vielas mais uma vez, eu digo-vos, sublinho-vos a frase com tinta azul nas testas até que seja a vossa dor una, sana, carbónica e apostrófica . Andaste a comprar com o passado nada mais do que o direito de dizer homem e mulher, tudo se resume a isso. Apetece insultar-te, filho da puta, filho sujo de um monte de lama e merda, terás sempre dentro de ti aquilo que és, aquilo que és sempre a chamar-te para a razão do que existe, a razão do que se te assemelha. Apetece gritar o teu nome, filho da puta, contar o teu segredo mais sujo, e tu tens segredos sujos, aquilo que nunca contas, os dedos partidos num pátio, era noite e tu não sabias viver muito bem, mas há pior no que dizes, tu sabes. Revelas e escondes na mesma medida. És um animal. Comes peixes pequenos. Improvisas o futuro só para ti, esqueces-te do monte de escrúpulos, ai a herança, ai a cruz. Para baixo, cabrão. O gato percorre a viela como um junkie com uma anilha, ele sabe tratar de ti, ele sabe tratar de ti, o gato gordo, poderoso, preto, borracho do teu medo, fungagueiro, focinhudo. Tens medo do quê, afinal? Foda-se. Aprende, sai de ti por um momento, dá uma volta e pára a cantoria, que não posso mais. Pensas em muito, mas és pouco no teu pensar. És um fraco, um cobarde. Venderias a tua carne a um talho se tivesses uma faca - se tivesses uma faca, não te saberias cortar. Estás enredado em tanto de ti que não sabes outra língua, falas em Tipróprio, és ignorante entre os outros. Olha para mim. Foda-se, olha para mim. O gato passa, vê, tenho o reflexo nos olhos. Nunca irás perceber. És fraco demais, vais perder, ele está já onde as tuas palavras não chegam a dizer que és tu e que é adorável. Perdeste o nome, perdeste a língua. Tu não és tu.