Sempre tive uma certa curiosidade pelo caso de Armin Meiwes, o canibal alemão. Um homem que
satisfaz o desejo de outrem de ser devorado, saciando assim a sua própria fome, mas sem prescindir de algum capricho no acto (Meiwes comeu o seu companheiro de festança em forma de
bife, com
molho de pimentão verde, croquetes e couve de Bruxelas como acompanhamento), merece, afinal, o interesse alheio. Como Hannibal Lecter, este homem obedece a um pulsar irracional e ao mesmo tempo não se esquece de incorporar no ritual a forma organizada e civilizada de prazer do
gourmet. O requinte deste Mal é o que o torna especialmente doentio e vampírico, mescla perfeita de
eros e
thanatos, pois não esqueçamos que, antes de se esvair em sangue, a vítima Bernd Jürgen Brandes tentou partilhar com o assassino o seu próprio pénis salteado com pimenta e alho. Diferença fundamental quanto ao psiquiatra inventado por Thomas Harris: Meiwes é real. Diferença ainda mais fundamental quanto a Lecter: Meiwes gravou em vídeo a sua aventura gastronómica. Sem dúvida, seria algo a mais tarde recordar, mas isto mostra de forma exemplar o papel da imagem no modo actual de representação e construção do real. Para além de ter, digamos,
domesticado o seu canibalismo com a elaboração culinária, Meiwes concebeu-o como um espectáculo, um filme que poderia rever vezes sem conta. A intenção poderá ter sido puramente masturbatória, mas não creio: estou em crer que terá sido
narcísica. A explicação dele para a sua patologia é a obsessão por um irmão mais novo - "alguém para fazer parte de mim",
diz ele. Meiwes quer fazer crescer aquilo que é. Como tal, precisa de um objecto que lhe sirva de registo desse crescimento - que ateste o momento em que outrem integrou o seu eu. Este caso, curiosamente, tem bastante a ver com o do artista Stelios Arcadiou e o modo como
este utiliza o corpo enquanto material artístico. Engraçado como não me parece que tenha tanto a ver com o sucesso do
escritor mexicano que retalhou a namorada mas nega tê-la comido. Meiwes nunca se perdeu de si mesmo: é, de uma certa perspectiva, um homem consciente dos seus desejos e que os soube satisfazer. Jose Luis Calva, pelo contrário, perde-se num remoinho de acidentes e acasos. No entanto, se se provar que o homem realmente não resistiu à debicadela, será interessante pensar em porque é que admitir o homicídio era preferível a admitir o canibalismo. Assassino sim, vaidoso nunca?