Na verdade, a questão mais importante não é a de os estudantes fazerem bem ou mal ao impedir a entrada na Reitoria. Nem a de haver cadeados que bloqueiam a entrada das faculdades e departamentos. Nem a de professores intentarem um processo-crime contra o presidente da AAC.
O que é mais importante, aquilo que fica escondido por trás de todo o folclore dos autocarros, dos cartazes, dos vão trabalhar malandros, é o facto de professores, alunos, funcionários e todos os demais membros da academia (o que, no caso da cidade de Coimbra, não é dificilmente extensível a todos os seus habitantes) tão facilmente se esquecerem uns dos outros e de desconhecerem a razão da sua função - e do seu bem-estar nela - na existência e no bem-estar nela dos outros. Ainda mais profundo do que isso é o facto de já mais ninguém acreditar. Existe-se, ponto; e o que é preciso é manter o ponto, certo? Sem motivos, sem ambições; ideais são coisas de herói. Os professores queixam-se que lhes pagam mal, que não têm salas. Os professores têm medo. Medo de sair das salas, medo de despegar os olhos do livro que têm por baixo. É com a cabeça baixa que murmuram "gostava de ganhar mais, dava jeito ter material didáctico". Têm medo a quem escreveu o livro. Não querem faltar ao respeito, não querem inimigos. Quem sabe quem conhece quem, quem se ofenderá. Não há dinheiro? Aguenta-se. Vai-se para as privadas. "Eu sei como o sistema funciona, ninguém dá nada a ninguém, e menos se dá a quem pedir, portanto, eu não pedirei". Não há salas? "Terei sempre uma cadeira para me sentar, do resto, virá quem vier, a aula será dada". Não há material nos laboratórios? "Uns fazem, os outros olham; depois trocam". As coisas resolvem-se, as coisas andam sozinhas. Não é preciso querer.
E os estudantes? Perdão, os de esquerda ou os de direita, de qual esquerda e direita, do Porto ou de Coimbra ou de Lisboa; e os que não falam, esses atinados, os que ficam à porta porque os maléficos dirigentes não os deixam entrar, os do eu quero é ter aulas, não me importo de pagar mais?
Tudo, tudo, as costas voltadas uns para os outros. Como se entende que um professor se permita fazer o papel ridículo de levar escondido debaixo do casaco um serrote para despedaçar uma corrente que está lá, antes de todos os seus vícios e em toda a sua ingenuidade, para evitar um retrocesso social (o fim da paridade de representação nos órgãos de gestão universitária, um aumento no custo de acesso a um serviço prestado pelo Estado)? Ambições de líder revolucionário? "Venham, meus pupilos, eu vos libertarei das malhas do obscurantismo! Pagaremos o que for preciso, todos nos deixaremos apagar no que de nós vive fora destas paredes, estas paredes que amamos, que abrigam a malha cuidadosa do nosso saber! Eu quero, posso e ensino, eu quero, posso e ensino!"
E depois: "nós até estamos do lado dos estudantes, mas isto é inadmissível. Isto é um ataque aos professores!". A solução. "Eles que falem, que prendam. O dinheiro vai entrar, se não for pelo lado de cima, é pelo lado de baixo. Não nos podem roubar a nossa maneira silenciosa de nos queixarmos. Eles podem pagar. Eles podem pagar, é o que interessa".
E a Constituição diz que incumbe ao Estado estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino. "Mas isso é um custo que se paga se se vir que tudo vai ficar melhor; estes alunos é que estragam tudo, mas nós reclamamos o direito de acesso ao local de trabalho, vamos trabalhar sossegados, mostramos como isto funciona bem e quem é de nos ajudar fá-lo-á. Depois, nada funciona bem; não importa mesmo nada, o que importa é nós esperarmos sempre que funcionará melhor".
Ferrer Correia morreu há dias. Numa das biografias, reli (soube-o aquando do trigésimo aniversário da Crise Académica do Maio de 1969) que ele e Paulo Quintela foram dos professores que mais intercederam junto da polícia a favor dos estudantes. Hoje, os professores querem que os alunos que lutam pelos seus direitos, pelos tão poucos que lutam pelos seus direitos (acentuo ainda mais a tónica desta frase: que lutam pelos seus DIREITOS), vão para a cadeia. Cheios de azedume, sem alternativas entre o cadeado e o silêncio. De costas voltadas. A academia existe? Ou a academia funciona? Existe, ponto. Está estática; é porque é. Não move os punhos em luta; deixa-se estar deitada enquanto metade de si rejeita a outra metade como que num ataque epiléptico. A academia não quer, a academia já não é o que era. Mas a academia existe, ponto, sim, e de costas voltadas, ponto, sim, ponto.